Fonte: Publicado por
soscorpo em Trabalho e Seguridade Social, nov/2011
As esquecidas da
abolição -Mesmo com conquistas recentes, nem sempre empregadas têm
direitos cumpridos. Correio Braziliense/Publicação: 11/11/2012
Postagem no Diário de
Pernambuco
Ter a carteira assinada
foi um direito conquistado em 1972, mesmo assim, na última década,
a proporção de profissionais sem contrato formalizado praticamente
se manteve %u2014 passou de 73,9% em 2001 para 69,3% em 2011
As últimas quatro
décadas limpando, lavando, passando e cuidando dos filhos dos outros
trouxeram para Rita de Cássia Oliveira a possibilidade de sustentar
a própria prole sozinha, ter alguns ex-patrões como amigos e
acumular poucos bens. Alterações graves na coluna, conhecidas como
bicos de papagaio, também são uma herança dos 40 anos de labuta.
Mas nenhum registro dessa lida diária, que começou quando a
potiguar de 53 anos tinha apenas 14, está impresso na carteira de
trabalho. As páginas em branco do documento explicam mais que o
fenômeno da informalidade no Brasil. Evidenciam, sobretudo, um olhar
perverso da sociedade sobre uma ocupação existente desde o
descobrimento do país. Das mucamas trazidas pelos portugueses às
empregadas domésticas de hoje, houve avanços inegáveis. Impossível
ignorar, porém, que um ranço da servidão ainda paira sob essas
trabalhadoras. Além de terem menos direitos garantidos por lei que
os demais profissionais, conquistas recentes nem sempre são
cumpridas.
Ter a carteira
assinada, por exemplo, foi um direito conquistado só em 1972, trinta
anos depois da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Mesmo
assim, na última década, a proporção de profissionais sem
contrato formalizado praticamente se manteve — passou de 73,9% em
2001 para 69,3% em 2011. Embora o crescimento econômico, social e
educacional do país provoque uma migração natural desses
trabalhadores para outros setores, o emprego doméstico ainda reúne
7,1% de todos os ocupados no Brasil — 6,6 milhões de pessoas. É
também a profissão mais exercida entre as mulheres. Quase 20% das
brasileiras ganham a vida cuidando da casa dos outros. Uma Proposta
de Emenda à Constituição que visa igualar as domésticas a outros
trabalhadores em termos de direitos, foi aprovada em comissão
especial da Câmara dos Deputados na última semana. As críticas são
acanhadas. Traduzem-se, geralmente, no temor patronal de não poder
arcar com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), a
hora-extra e os outros ganhos previstos na proposta.
As resistências
legítimas e comuns por parte dos patrões, sempre que alguma
categoria reivindica melhorias, vão além da questão pecuniária no
caso dos domésticos, apontam especialistas. "Há um imaginário
social, muito relacionado ao passado escravista, que não concebe
esse tipo de atividade como uma profissão que deva ser valorizada e
remunerada como as outras", afirma Joaze Bernardino Costa,
professor do departamento de Sociologia da Universidade de Brasília
(UnB). Para Tatau Godinho, da área de autonomia econômica feminina
da Secretaria de Políticas para as Mulheres, será necessária uma
mudança de mentalidade. "Por que algumas pessoas não arrumam a
cama quando acordam? Porque fomos educados relacionando o trabalho
doméstico com as mulheres, então pressupõe-se que a mãe ou uma
irmã fará o serviço, e com a existência de trabalhadoras
domésticas em grande quantidade. Elas continuam sendo muitas, 7
milhões de pessoas. É preciso garantir seus direitos agora",
comenta Tatau.
Embora nas
principais regiões metropolitanas do país o rendimento médio das
empregadas domésticas seja pouco superior a R$ 622, essa quantia
garantida por lei como o mínimo que um trabalhador pode receber não
alcança um quarto da categoria no Brasil. São quase 2 milhões de
pessoas ganhando no máximo R$ 310. Trinta e cinco mil prestam
serviços sem receber qualquer remuneração, segundo dados mais
recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
referentes a 2011. São geralmente meninas e mulheres que trabalham
em troca de comida, moradia e vestuário. Os ganhos modestos, aliados
aos problemas que surgem com uma relação tão próxima entre
patrões e empregados, fazem da atividade uma das últimas opções
entre quem pouco estudou.
Tiana Cristina Costa
Silva, 24 anos, doméstica desde os 14, tem dificuldade de enumerar o
lado positivo da profissão. “O que tem de bom mesmo é só receber
o dinheiro da gente. Mas como eu não estudei muito, tenho que
trabalhar assim”, diz a maranhense de Mirinzal. Ela tem cinco anos
de estudo, pouco menos que a média nacional, de 6,1. O índice,
entretanto, fica muito atrás dos 9,3 anos de escolaridade das
trabalhadoras brasileiras exceto as domésticas. Tiana não espera
muito mais do que sua mãe obteve na vida, atuando também em casa de
família. “A gente trabalhava no Maranhão. Lá é difícil.
Ninguém paga o salário. É R$ 200, R$ 300”, conta Francisca Lúbia
Costa, 43 anos, com os netos em volta.
Mãe e filha no
trabalho doméstico representam uma realidade cada vez menos comum no
Brasil. “Romper o ciclo é mais difícil em locais distantes e
pobres. Mas, nas cidades grandes, as jovens estão aproveitando
outras oportunidades, no comércio, nos serviços, abertas inclusive
pelo momento econômico do país”, explica Mario Avelino,
presidente do Instituto Doméstica Legal. A falta de reposição de
profissionais já aponta, inclusive, um envelhecimento da categoria.
Em uma década, a quantidade de empregadas com idade entre 18 e 24
anos caiu de 21% para 11%. Por outro lado, quase 70% das domésticas,
hoje, têm mais de 40. Em 2009, essa taxa era de 52%.
O tempo castiga
Francisca, que já não encontra forças para trabalhar como antes.
“Antes eu arrastava móveis, carregava caixas, fazia de um tudo.
Hoje estou mais fraca”, diz a mulher.Em Mirinzal, segundo ela,
apesar de trabalhar “desde mocinha”, nunca havia tido a carteira
de trabalho assinada. Só em Brasília conseguiu o que considera uma
grande conquista. “Eu acho que o salário podia aumentar um pouco.
Mas estou conseguindo levar. Depois que vim pela primeira vez, em
2000, já trouxe todo mundo. Marido, filhos e netos”, conta
Francisca, que mora de aluguel em uma casa em Ceilândia Norte. Ela e
a filha têm o perfil da profissão, já que 93% são mulheres, das
quais 61% negras. Por isso, nessa reportagem, a categoria é sempre
citada no feminino.
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